compaixão, ensinamento, felicidade, gratidão, interdependência

A vida é dura: seis formas de lidar com isso – 3

4. Veja a confusão como o Buda e pratique a vacuidade

O quarto aforismo, “Veja a confusão como Buda e pratique a vacuidade”, requer alguma  explicação. Isto vai para além do nosso entendimento convencional ou relativo, em direção a um sentido mais profundo do que somos. Embora convencionalmente eu seja eu e tu és tu, de uma perspectiva absoluta, aos olhos de Deus, se preferir, não há o eu e não há o outro. Há apenas ser, e apenas amor, que é ser compartilhando-se a si consigo mesmo, sem barreiras e com calor. Apenas parece haver um eu e um tu porque é assim que as nossas mentes e sistemas sensoriais funcionam. Esse amor sem limites é a prática da vacuidade.

“Veja a confusão como Buda e pratique a vacuidade” significa que nós nos situamos de forma diferente em relação à nossa confusão humana comum, à resistência, à dor, ao medo, à mágoa, e assim por diante. Em vez de desejar que essas emoções e reações por fim desapareçam e que nos livremos delas, nós as levamos a um nível mais profundo. Olhamos para a sua realidade subjacente.

O que realmente está a acontecer quando estamos chateados ou com raiva? Se pudéssemos por instantes desprender-nos da culpa, do desejo e da autopiedade e olhar para a base real do que está de facto a acontecer, o que iríamos ver? Veríamos o tempo a passar. As coisas a mudar. Veríamos a vida a surgir e a passar, vindo de lugar nenhum e indo para lugar nenhum. Momento a momento, o tempo escapa e as coisas se transformam. O presente torna-se passado — ou torna-se futuro? E, ainda assim, no momento presente não há passado nem futuro. Assim que examinarmos o “agora”, ele foi. E não sabemos como ou para onde vai.

Isso pode soar a filosofia, mas não parece filosofia quando você ou alguém próximo está a dar à luz. Se nesse momento estiver na sala de partos ou estiver, você mesma, no meio da dor e da alegria, a dar à luz — nesse primeiro momento de explosão, fica maravilhada. Essa vidinha que achava que estava vivendo, com as suas várias questões e problemas, desaparece completamente frente ao milagre da vida visceral brotando na frente dos seus olhos. Ou se você está presente quando alguém deixa este mundo e entra na morte (se é que existe um lugar para entrar), você sabe então que esse vazio não é somente filosofia. Pode não saber o que é, mas vai ver que é real. Vai perceber que essa realidade é poderosa e o faz olhar para a sua vida, e para a vida como um todo, de forma bastante diferente. Surge um novo contexto que é mais do que pensamento, mais do que  conceito. Quando olha para os seus problemas humanos diários à luz do nascimento e da morte, está a praticar esse aforismo. Cada momento da sua vida, até mesmo (e talvez especialmente) os seus momentos de dor, desespero ou confusão, é um momento de buda.

Então esteja presente em momentos de nascimento e de morte sempre que possível e aceite esses momentos como presentes, como oportunidades para a profunda prática espiritual. Mas mesmo quando não participar nesses momentos intensos, pode repetir e rever essa frase, e meditar sobre ela. E quando a sua mente está confusa e perdida, pode respirar e tentar ir para além do desejo e da confusão. Pode perceber que nesse exato momento o tempo está a passar, as coisas estão a transformar-se e que esse facto impossível é profundo, belo e alegre, mesmo que continue imerso no seu desespero.

joseph-pearson-310899

5. Faça o bem, evite o mal, aprecie a sua loucura, peça ajuda

Agora os aforismos nos trazem de volta à terra. Se os ensinamentos espirituais existem para realmente transformar as nossas vidas, eles precisam oscilar (como esses aforismos fazem) entre dois níveis, o profundo e o mundano. Se a prática é muito profunda, isso não é bom. Estamos cheios de insights maravilhosos e elevados, mas falta-nos a habilidade de atravessar o dia com alguma graciosidade, ou de nos relacionarmos com os problemas e as pessoas na vida comum. Nós podemos ser sublimemente metafísicos, tocantemente compassivos, e ainda sermos incapazes de nos relacionarmos com um ser humano normal ou com um problema mundano. Esse é o momento em que o mestre Zen nos golpeia com seu bastão e diz: “Lavem as vossas tigelas! Matem o Buda!”.

Por outro lado, se a prática é muito mundana, se nós nos tornamos demasiadamente interessados nos detalhes de como nós e os outros nos sentimos e o que nós ou eles precisam ou querem, então a natureza elevada de nossos corações não estará acessível e nós vamos afundar com o peso das obrigações, dos detalhes e das preocupações do quotidiano. Este é o momento em que o mestre diria: “Se tiver uma bengala, eu dar-te-ei uma bengala; se precisares de uma bengala, eu vou tirar-ta.” Nós precisamos tanto da filosofia religiosa profunda quanto das ferramentas práticas para o dia-a-dia. Essa necessidade dupla, de acordo com as circunstâncias, parece sempre acompanhar o ser humano. Estivemos no aforismo anterior a contemplar a realidade como o Buda e a praticar a vacuidade. Isso foi importante. Agora é hora de voltar para a terra.

Primeiro, faça o bem. Faça ações positivas. Diga olá para as pessoas, sorria para elas, diga feliz aniversário, sinto muito pela sua perda, há algo que eu possa fazer para ajudar? Estas coisas são convenções sociais, e as pessoas dizem isso o tempo todo. Mas praticá-las intencionalmente é trabalhar um pouco mais duramente para que sejam realmente sinceras. Genuinamente tentamos ser úteis, gentis e atenciosos da forma mais simples e mais grandiosa que conseguirmos, todos os dias.

Segundo, evite o mal. Isso significa prestar mais atenção nas ações de corpo, fala e mente, notando quando nós fazemos, falamos ou pensamos coisas que são prejudiciais ou indelicadas. Tendo chegado até aqui com o treinamento da mente, nós não temos como não notar os nossos momentos ordinários ou maldosos. E quando notamos, sentimo-nos mal. No passado nós poderíamos ter dito para nós mesmos: “Eu só disse isso porque ela realmente precisa aprender. Se ela não me tivesse feito o que fez, eu não teria falado assim com ela. Foi realmente culpa dela.” Agora nós vemos que essa é uma forma de nos protegermos (afinal de contas, nós acabamos de praticar “Atribua todas as culpas a um só”) e almejamos aceitar a responsabilidade pelas nossas ações. Então nós prestamos atenção às coisas que dizemos, pensamos e fazemos — não obsessivamente, não de um modo perfecionista, mas apenas naturalmente e com generosidade e compreensão — e finalmente nós nos purificamos de boa parte dos pensamentos e palavras pouco generosos.

As duas últimas práticas deste aforismo, que eu interpretei como “Aprecie a sua loucura” e “Peça ajuda/Reze por ajuda”, têm tradicionalmente relação com fazer oferendas para dois tipos de criaturas: demónios (seres que impedem a prática) e protetores do Dharma (seres que ajudam a permanecer sincero na prática). Mas para os nossos propósitos neste momento é melhor vê-las de uma forma mais geral.

Nós podemos entender as oferendas a demónios como “aprecie a sua loucura”. Reverencie a sua própria fraqueza, a sua própria loucura, a sua própria resistência. Congratule-se por elas, aprecie-as. Isso é de facto uma maravilha, o quanto nós somos egoístas, confusos, preguiçosos, ressentidos e assim por diante. Nós adquirimos essas coisas com honestidade. Nós fomos bem treinados para manifestá-las a cada momento. Esse é o prodígio da vida humana transbordando, é o efeito da nossa educação, da nossa sociedade, que apreciamos até mesmo quando estamos a tentar domá-lo e gentilmente convencê-lo a manifestar o bem. Então nós fazemos oferendas aos demónios dentro de nós e desenvolvemos um senso de apreciação bem-humorada de nossa própria estupidez. Estamos em boa companhia! Podemo-nos rir de nós mesmos e de tudo o resto.

naassom-azevedo-181804

Ao fazermos oferendas para os protetores do Dharma, nós rezamos a qualquer força em que acreditemos ou não, para nos ajudar. Quer imaginemos uma deidade ou um Deus ou não, podemos buscar algo para além de nós mesmos e para além de qualquer coisa que possamos descrever objetivamente e pedir ajuda e força para o nosso trabalho espiritual. Podemos fazer isso em meditação, com palavras silenciosas ou em voz alta, verbalizando as nossas esperanças e desejos.

A oração é uma prática poderosa. Não é uma questão de abandonar a nossa própria responsabilidade. Não estamos a pedir para sermos desobrigados da necessidade de agir. Estamos a pedir ajuda e força para fazer o que sabemos que precisamos de fazer, com o entendimento de que embora nós precisemos dar o nosso melhor, qualquer coisa benéfica que surja no nosso caminho não é um feito nosso, um resultado pessoal. Isso vem de uma esfera mais ampla do que aquilo que podemos controlar. Na verdade, é contraproducente conceber a prática espiritual como uma tarefa que vamos realizar sozinhos. Afinal de contas, já não praticamos o “Seja grato a todos”? Já não aprendemos que não é possível fazer nada sozinho? Afinal de contas, estamos a treinar uma prática espiritual e não uma autoajuda pessoal (embora esperemos que isso nos ajude, e provavelmente ajudará). Então, não apenas faz sentido rezar por ajuda, não apenas aparenta ser poderosamente certo e bom fazê-lo, isso é importante também para que possamos lembrar que não estamos sozinhos e que não podemos fazer nada sozinhos.

Seria natural esquecermos este ponto, cairmos no hábito de imaginarmos uma autossuficiência ilusória. As pessoas frequentemente dizem que os budistas não rezam porque o budismo é uma tradição ateísta ou não-teísta, que não reconhece Deus ou um Ser Supremo. Tecnicamente isso pode estar correto, mas a verdade é que os budistas rezam e sempre rezaram. Rezam para toda uma panóplia de budas e bodisattvas. Até mesmo budistas zen rezam. Rezar não requer uma crença em Deus ou deuses.

 

6. O que quer que encontre é o caminho

Esse aforismo resume os outros cinco: o que quer que aconteça, bom ou ruim, faça com que isso seja parte da sua prática espiritual.

Na prática espiritual, que é a sua vida, não há intervalos nem erros. Nós seres humanos estamos sempre a realizar uma prática espiritual, saibamos disso ou não. Pode pensar que perdeu o fio da meada, que estava a praticar muito bem mas a vida ficou muito ocupada e complicada e perdeu o rumo do que estava a fazer. Pode sentir-se mal por causa disso, e esse sentimento se alimenta de si mesmo, e torna-se cada vez mais difícil voltar a seguir o trilho.

Mas isso é apenas o que pensa; não é isso que está a acontecer. Uma vez que começa a praticar, está sempre a prosseguir, porque tudo é prática, até mesmo os dias ou as semanas ou as vidas inteiras em que se esqueceu de meditar. Mesmo assim, está a praticar, porque é impossível perder-se. Está constantemente a encontrar-se, quer saiba disso ou não. Praticar esse aforismo é saber que, não importa o que esteja a acontecer — não importa o quão distraído pense que esteja, não importa o quanto se sinta um indivíduo terrivelmente preguiçoso que perdeu completamente o rumo das suas boas intenções e está agora irremediavelmente perdido — ainda assim tem a responsabilidade e a capacidade de pegar toda essa negatividade, circunstâncias adversas e dificuldades e transformá-las no caminho.
Tradução da responsabilidade do Centro Budista do Porto

© 2013  Norman Fischer. Excerto de “Training in Compassion: Zen Teachings on the Practice of Lojong.” Publicado em Lions Roar

Deixe um comentário